1.
Às vezes, pensara que a Casa tinha
raízes fundas que mergulhavam na terra. E, por isso, imaginara, num mapa do
subsolo, os caminhos escondidos, que atravessavam a aldeia, cruzando veios de
água, sílica, areias, vários minerais,
e matéria orgânica capaz de manter a estrutura da Casa na superfície. Sem uma fratura, as paredes da Casa ostentavam a força de
um tronco de árvore centenário, abandonado às inclemências dos rigores das
estações, que vivificava dando abrigo. Era, assim, para a Criança, a Casa um
todo orgânico que se confundia com a paisagem em redor de outras casas
idênticas, de largas paredes de taipa, preenchidas por xisto, areia, barro,
palha amassados e caiada de um branco brilhante, refratário, que iluminava até
na escuridão dos dias mais cinzentos do ano.
Hoje, passados tantos
anos, os mapas que a Criança observa são os da superfície dos terrenos, e a
Casa, vista na fotografia aérea, tirada nos anos sessenta, é, no cinzento da
cor, uma mancha exatamente retangular desprovida da ligação ao subsolo. O
movimento que dá vida não está inscrito na fotografia; onde a Casa povoada e
habitada pelas gerações da família até si?, que labutaram na construção como
quem semeou, nos campos, o trigo e o ceifou na reminiscência do pão diário que
é o suor da vida. E inorgânica, a imagem, que tem nas suas mãos, não lhe
permite revisitar o passado real da Casa, obscurecido pela distância a que se
encontra no espaço físico e pelos anos distantes de uma memória que tecia engenhosas
fantasias, alimentadas pelas histórias de ouvir contar que as Avós tão bem
conheciam.
A street
view do Google Maps não chegou
ainda à aldeia alentejana para que a Criança lhe possa explorar os recantos
mais atuais e, sobretudo, olhar para a Casa que acaba de herdar, tentando
reconhecer nela a presença de si mesma enquanto a habitante para sempre mais
jovem. A fixação da imagem da Casa num tempo recente torna-se impossível. O
recurso à tecnologia mais atual apenas permite definir o trajeto retilíneo até
à aldeia e observar, no ecrã do computador, o mesmo retângulo informe do
telhado, recolhido mais recentemente por imagens de satélite. E, num
determinado sentido, pensa, «como tudo é tão estranho: a distância da
profundidade das raízes encontra-se ao nível das imagens feitas do Céu,
tentando ambas fixar a Casa, um na medida do universo onírico que recria com
inexatidão a vida, outro na medida do despontar da técnica que regista com
exatidão a realidade». Entre um e outro, a mente da Criança oscila como na oscilação
de uma cadeira de baloiço, procurando perscrutar a sua mente e, ao mesmo tempo,
tentando encontrar, nos elementos físicos de registo, os pedaços exatos que vêm
complementar uma memória fragmentada construída pelas conversas ouvidas, nos
serões, junto à lareira e que agora serve para recartografar a história, no
presente, como se desenhasse um mapa não do espaço mas do tempo.
A Criança recorre, por
isso, à memória, para desenhar a aldeia no campo visual da sua mente. Se vista do
Céu, sem zoom, esta é apenas um
pequeno ponto indefinido num largo desconcerto de planície despovoada; mas, na
recordação que guarda, ela parece erguer-se toda, como um vértice geodésico,
para além do extenso terreno que a cerca, na correnteza de um fio de estrada
muito longo e estreito. É, sem dúvida, uma finisterra, sem cabo de mar,
abandonada no coração das cercanias alentejanas, mergulhada na profunda solidão
dos campos. Parece-lhe, agora, assim, uma espécie de infinito que não se pode
tocar, e aquela distância, percorrida na estrada principal até chegar à aldeia,
é como se fosse um caminho de existência, em que como peregrinos avançamos,
desconhecendo o traçado. Contudo, embora previsível, a estrada retilínea, dá
suporte à Criança para a divagação e o sonho. Sonhar durante o trajeto e o
caminho, todo ele agora contido no pensamento. Sonhar as raízes secas ao sol na
terra esventrada, lado a lado com as reses dolentes, que dormitam à sombra dos
raros sobreiros e azinheiras dispersos no montado. Fazer a estrada é chegar à
aldeia como viajante intrépido e ver, na primeira curva do caminho, a Casa que
não se distingue do conjunto do casario todo ele de um branco lavado, inocente
e puro.
E entre a memória dos campos,
da aldeia e da Casa e a realidade que hoje será, sobrepõe-se o agudo avanço de
uma civilização citadina e litoral, a mesma onde há tantos anos a Criança vive,
mergulhada no ritmo do advento de tudo o que é eletrónico e imediato;
mergulhada no bulício daquilo que se move instantaneamente, o telecomando da
porta da garagem do prédio, o telecomando dos estores da casa, o telecomando do
televisor e do aparelho de rádio, o milagre da técnica do computador e do gps
e, acima de tudo, o bulício do emprego, onde se sente como mais um elo desta
cadeia de automatismos de manhã até ao entardecer. A curiosidade que sente pela
Casa e pela aldeia, desde que o Pai lhe fizera a doação de herança da
habitação, é imensa, procurando saber até que ponto é viva e real a sua memória,
na distância de trinta e seis anos, qual porto seguro e imutável que permanece
na lembrança.
O sentimento desse
porto seguro, que está lá, algures, meio perdido numa planície longínqua, é
como um reino misterioso que se procura, sem achar, é como uma Nova Atlântida
descoberta num mar, é como uma utopia verdadeira que a Criança guarda em si mesma
como um sonho real e vivido. De alguma forma no povoamento dos seus sonhos, habita-os
a recordação de um apogeu civilizacional, organizado e justo, feito à medida de
quem vive ao ritmo das estações e do movimento dos dias, e o isolamento não é
senão a marca que preserva a identidade de uma sociedade fraterna. A aldeia foi
no passado o seu centro do mundo, livre de injustiças sociais e onde cada um
labutava na medida das suas capacidades e aptidões, não desejando senão o
sustento diário para uma vida condigna. Talvez outros vissem nisto uma forma de
pobreza, mas a Criança recorda apenas que tinha alegria e pão e sabedoria em
todos os momentos do dia. Tudo o que fora essencial para o seu crescimento. Habitara
no berço de uma harmonia absoluta, qual profecia milenarista de uma utopia
social. Por isso, perscruta a Criança os mapas para tentar obter um sinal desta
utopia que traz na memória. A paz que se eterniza numa tarde que passa lenta,
num dia que corre sem sobressaltos, numa existência feliz. O cúmulo da
felicidade possível, estava todo ali concentrado naquele ponto minúsculo, se
visto do Céu, mas que se estendia no espaço da sua memória em ruas estreitas,
em casas e em gentes como um oásis refrescante no meio de uma paisagem deserta.
O reino em que vivera e habitara durante catorze anos, poderia ser recuperado?
Estaria ele ali ainda intacto, ou a civilização ocidental teria destruído esta
que fora a sua última realização?
Quer acreditar que não. Por isso, a Criança, sem hesitar, pega no telemóvel e envia uma simples mensagem ao seu chefe de gabinete: «Por motivos pessoais, antecipo o período de vinte e um dias de férias, a gozar a partir de amanhã».