sábado, 7 de junho de 2025

7.

            Na realidade, de facto, a Criança tem estado cheia de uma tristeza solitária e secreta – tristeza que não anuncia sequer a si própria - , mas que, na verdade, não era assim tão má; pois fazia parte da sua natureza melancólica. E, no fundo, era até bastante agradável estar sozinha a observar cada coisa no interior da Casa, com um olhar que descobria em cada detalhe um sentido novo. E cada coisa exercia em si um fascínio triste ao qual se rendia.

 

            Uma grande obra como começa? É moldada em barro ou é inscrita numa tela; mas qual é a sua origem?, de onde provém o rasgo inspirado que como que antecipa a obra?

 

            Nisto pensa a Criança, olhando o largo tapete em ponto de arraiolos executado por artesãs e que permanecia como testemunho de uma vida de trabalho árduo: deus, trabalho e constância, num orar e trabalhar que se aproxima das quatro regras do ikigai japonês: primeiro, faz aquilo que tu amas; segundo, faz aquilo em que és bom; terceiro, faz aquilo que o mundo precisa; quarto, faz aquilo por que possas ser pago. Significando tudo isto que o indivíduo tem um propósito na vida. E, então, justamente, a Criança, pensando, percebe que a consciência é útil e permite a redenção. Talvez fosse em busca de uma redenção que fizera o trajeto até à Casa. O que acontecera, afinal, na sua vida nestes trinta e seis anos? O que às vezes sentia era que, durante esse tempo, a sua alma se tinha fragmentado em pedaços, estando cada um deles separado do todo que era o seu espírito e, por isso mesmo, sentindo-se perdida independentemente do sítio onde estivesse, porque lhe faltava aquela inteireza que só o espírito vestido da alma pode dar ao homem. E tinha sido em busca dessa roupagem que empreendera a viagem de regresso a uma origem que, afinal, não é já possível recuperar. É bem certo o ditado que diz, descortina agora, não regresses nunca aonde um dia já foste feliz. Parece ser uma verdade: no fundo, nada era já igual, nem tão pouco a Criança, também, era a mesma. O que procurava ou estava dentro de si própria ou não estava em lado algum. A luz que num tempo passado iluminara a Casa já há muito que estava perdida.

 

            O sol, a esta hora da tarde, já tinha mergulhado sob os telhados baixos das casas da aldeia; quando a Criança percebeu que era necessária uma decisão: ficar ou partir. Estas horas, desde o nascer do dia, tinham sido particularmente intensas e precisava de saber aquilo que devia fazer. Se regressasse, não regressava a mesma de quando partira hoje de manhã, com o fito de encontrar na Casa a resposta à sua questão sobre o sentido da vida; mas, se regressasse, neste momento, não levaria consigo uma solução para o grande mistério. Então pensou que um segundo no tempo do universo é como cem anos para um homem e que o seu anseio não tem uma resposta no tempo linear, mas, sim, no tempo psicológico e que a iluminação do que procura não acontece num passo a passo; é antes algo súbito e inesperado para o que não vale a pena correr.

 

            «O que aprendera, neste entretanto»?, interroga-se a Criança. O que poderá levar consigo, quando for o momento de partir?, parecia-lhe evidente que tudo aquilo que é material é transitório e que é aquilo que se escolhe que representa o âmago da realidade que se pode alcançar. Com tudo isto no pensamento, percebe que está apenas a exercitar a imaginação. Veio em segredo. Está na casa em segredo. Partirá em segredo também.

 

            Olha, de novo, para o tapete de arraiolos. Percebe que o tapete está no seu devido lugar. (Como de resto acontece com cada objeto da Casa). Apenas a Criança não sabe onde está o seu lugar certo no universo. Quando Deus criou o mundo, pôs em marcha um plano. E esse plano renova-se a cada momento. Talvez que criar com consciência seja um dom que nos pertence, a Deus e ao homem, e essa será a liberdade que nós temos na vida, diz para si própria a Criança, absorvida pelos desenhos geométricos do tapete. Afinal, tudo pode começar num sonho. E tinha sido a projeção de um sonho que a trouxera até aqui… contudo, tinha sido incapaz de dar o passo seguinte. Ou seja, não tinha sido capaz de desenvolver esse projeto em pormenor. Talvez tivesse sido um sonho insensato. Sair repentina e subitamente de casa. Abandonar tudo. Gozar vinte e um dias de férias. Duvidar até se um dia havia de regressar a Lisboa… faltava-lhe o estofo de um criador, pensa enfim. Tinha projetado um plano de grandeza e verificava, agora, que esse plano não tinha significado nem valor. E o significado faz parte do influxo da existência.

 

            Afinal, na Casa, a Criança tinha apenas estado a olhar para as coisas, como se estivesse a olhar para o mundo numa dimensão reduzida a uns quantos objetos que podia tocar e perceber. Tinha tido até ao momento uma atitude completamente passiva, como se cada coisa exercesse um poder sobre si própria. Em si mesmo, este facto não teria importância, se não afetasse a consciência que a Criança tem da realidade. Mas a verdade é que afeta. Ver não é o suficiente para criar em si um propósito. Algo mais se requer para alcançar um impulso criativo e poder libertar as dores aprisionadas do tempo presente. Numa existência quase banal, em que a Criança vive, ganhando o seu sustento, sem confiar nas suas capacidades. O trabalho difícil das artesãs que bordaram o tapete é um trabalho que se realiza no campo da consciência. O trabalho difícil para a Criança é ser capaz de perceber aquilo que quer da vida: caminhar com um propósito num imenso mar de possibilidades ou desistir mesmo estando no limiar de uma porta que se abre para o desconhecido.