7.
Na
realidade, de facto, a Criança tem estado cheia de uma tristeza solitária e secreta
– tristeza que não anuncia sequer a si própria - , mas que, na verdade, não era
assim tão má; pois fazia parte da sua natureza melancólica. E, no fundo, era
até bastante agradável estar sozinha a observar cada coisa no interior da Casa,
com um olhar que descobria em cada detalhe um sentido novo. E cada coisa exercia
em si um fascínio triste ao qual se rendia.
Uma
grande obra como começa? É moldada em barro ou é inscrita numa tela; mas qual é
a sua origem?, de onde provém o rasgo inspirado que como que antecipa a obra?
Nisto
pensa a Criança, olhando o largo tapete em ponto de arraiolos executado por
artesãs e que permanecia como testemunho de uma vida de trabalho árduo: deus,
trabalho e constância, num orar e trabalhar que se aproxima das quatro regras
do ikigai japonês: primeiro, faz aquilo que tu amas; segundo, faz aquilo em que
és bom; terceiro, faz aquilo que o mundo precisa; quarto, faz aquilo por que
possas ser pago. Significando tudo isto que o indivíduo tem um propósito na
vida. E, então, justamente, a Criança, pensando, percebe que a consciência é
útil e permite a redenção. Talvez fosse em busca de uma redenção que fizera o
trajeto até à Casa. O que acontecera, afinal, na sua vida nestes trinta e seis
anos? O que às vezes sentia era que, durante esse tempo, a sua alma se tinha fragmentado
em pedaços, estando cada um deles separado do todo que era o seu espírito e,
por isso mesmo, sentindo-se perdida independentemente do sítio onde estivesse,
porque lhe faltava aquela inteireza que só o espírito vestido da alma pode dar
ao homem. E tinha sido em busca dessa roupagem que empreendera a viagem de
regresso a uma origem que, afinal, não é já possível recuperar. É bem certo o
ditado que diz, descortina agora, não regresses nunca aonde um dia já foste
feliz. Parece ser uma verdade: no fundo, nada era já igual, nem tão pouco a
Criança, também, era a mesma. O que procurava ou estava dentro de si própria ou
não estava em lado algum. A luz que num tempo passado iluminara a Casa já há
muito que estava perdida.
O
sol, a esta hora da tarde, já tinha mergulhado sob os telhados baixos das casas
da aldeia; quando a Criança percebeu que era necessária uma decisão: ficar ou
partir. Estas horas, desde o nascer do dia, tinham sido particularmente
intensas e precisava de saber aquilo que devia fazer. Se regressasse, não
regressava a mesma de quando partira hoje de manhã, com o fito de encontrar na
Casa a resposta à sua questão sobre o sentido da vida; mas, se regressasse,
neste momento, não levaria consigo uma solução para o grande mistério. Então
pensou que um segundo no tempo do universo é como cem anos para um homem e que
o seu anseio não tem uma resposta no tempo linear, mas, sim, no tempo
psicológico e que a iluminação do que procura não acontece num passo a passo; é
antes algo súbito e inesperado para o que não vale a pena correr.
«O
que aprendera, neste entretanto»?, interroga-se a Criança. O que poderá levar
consigo, quando for o momento de partir?, parecia-lhe evidente que tudo aquilo
que é material é transitório e que é aquilo que se escolhe que representa o
âmago da realidade que se pode alcançar. Com tudo isto no pensamento, percebe
que está apenas a exercitar a imaginação. Veio em segredo. Está na casa em
segredo. Partirá em segredo também.
Olha,
de novo, para o tapete de arraiolos. Percebe que o tapete está no seu devido
lugar. (Como de resto acontece com cada objeto da Casa). Apenas a Criança não
sabe onde está o seu lugar certo no universo. Quando Deus criou o mundo, pôs em
marcha um plano. E esse plano renova-se a cada momento. Talvez que criar com
consciência seja um dom que nos pertence, a Deus e ao homem, e essa será a
liberdade que nós temos na vida, diz para si própria a Criança, absorvida pelos
desenhos geométricos do tapete. Afinal, tudo pode começar num sonho. E tinha
sido a projeção de um sonho que a trouxera até aqui… contudo, tinha sido
incapaz de dar o passo seguinte. Ou seja, não tinha sido capaz de desenvolver
esse projeto em pormenor. Talvez tivesse sido um sonho insensato. Sair
repentina e subitamente de casa. Abandonar tudo. Gozar vinte e um dias de
férias. Duvidar até se um dia havia de regressar a Lisboa… faltava-lhe o estofo
de um criador, pensa enfim. Tinha projetado um plano de grandeza e verificava,
agora, que esse plano não tinha significado nem valor. E o significado faz
parte do influxo da existência.
Afinal,
na Casa, a Criança tinha apenas estado a olhar para as coisas, como se
estivesse a olhar para o mundo numa dimensão reduzida a uns quantos objetos que
podia tocar e perceber. Tinha tido até ao momento uma atitude completamente
passiva, como se cada coisa exercesse um poder sobre si própria. Em si mesmo,
este facto não teria importância, se não afetasse a consciência que a Criança
tem da realidade. Mas a verdade é que afeta. Ver não é o suficiente para criar
em si um propósito. Algo mais se requer para alcançar um impulso criativo e
poder libertar as dores aprisionadas do tempo presente. Numa existência quase
banal, em que a Criança vive, ganhando o seu sustento, sem confiar nas suas
capacidades. O trabalho difícil das artesãs que bordaram o tapete é um trabalho
que se realiza no campo da consciência. O trabalho difícil para a Criança é ser
capaz de perceber aquilo que quer da vida: caminhar com um propósito num imenso
mar de possibilidades ou desistir mesmo estando no limiar de uma porta que se
abre para o desconhecido.