2.
«Pelo primeiro outorgante foi dito
que, pela presente escritura, doa, livre de quaisquer ónus ou encargos, e por
conta da quota disponível, ao segundo outorgante, a Casa. Disse o segundo
outorgante que aceita a presente doação nos termos exarados».
Outra fora a escritura, há cem anos
atrás, quando o Bisavô celebrara o aforamento do terreno, que fazia parte da
grande herdade, fronteira ao lugar onde nasceria a aldeia. O número de gerações
em que o foro costumava ser estabelecido era três, porém não sucedera assim, e
o Bisavô celebrara uma escritura de aforamento perpétuo transmissível à sua descendência
legítima. Fora ele o construtor da Casa e como todos os grandes construtores
terá tido o sonho de uma certa eternidade que sempre está associada a uma obra,
ainda que, no horizonte dos tempos, sempre efémera, como tudo o que é feito com
mão humana. Ou talvez não seja bem assim, talvez; lá longe, num Egito de que
ele nunca ouvira falar, outros iguais construtores ergueram edificações e
preservaram infinitamente corpos: tão infinitamente quanto chega ao ponto das
histórias da origem já terem sido esquecidas. E um pouco por todo o planeta, em
continentes e ilhas, marcas imemoriais da construção humana são preservadas em
densas florestas.
«Ah! Mas são construções em pedra
maciça»!, diz-lhe o Filho.
Serão, sem dúvida, o que muitos
entendem ser grandes livros de pedra como picos de altas montanhas tão
desiguais da Casa, em alvenaria e taipa, e condenada ao envelhecimento, tanto quanto
um homem à sua decrepitude. E para mais sem segredos. Toda a história da Casa
está registada em consecutivas escrituras que assinalam mortes e sucessões ao
longo do século vinte. E assim, do mesmo modo, a história da família está
registada na Casa, quem sucedeu a quem, quem casou com quem, a variação dos
nomes e apelidos, e até a ocultação para sempre do dia da morte do Bisavô, que
ninguém guardara na memória.
Era o outono de dois mil e doze,
quando a Criança decide partir de Lisboa para o coração do Alentejo. Não fora
uma decisão longamente ponderada. A vontade nascera de um impulso súbito,
sentido como necessário. Os mapas e as fotografias áreas eram insuficientes
para que a recordação se desenhasse com a exatidão necessária para sentir que a
Casa lhe pertencia; que era seu aquele chão que há décadas acolhia as
sucessivas gerações, uma após outra, ininterruptamente, até à morte. Por isso,
na noite anterior, no dia mesmo em que se celebrara a escritura de doação, sentira
uma necessidade aguda de partir, como se, nesse gesto, se simbolizasse a posse.
Bastaria fazer uma simples mala de
viagem com o mínimo indispensável para a permanência de vinte e um dias.
Algumas roupas, objetos de higiene pessoal, um computador portátil,
carregadores de baterias, e, sim, como leitura, levaria consigo o Caderno
manuscrito da Avó do qual a Criança fora a fiel depositária. O que a levava
para longe do seu local habitual de vida fácil e conforto era, sobretudo, um
impulso. Mas, ponderando melhor, dir-se-ia que todo o seu percurso de vida a
preparara para este momento: o instante de abandonar tudo para procurar
conhecer o mistério que é nascer para, fatalmente, morrer um dia. E
parecia-lhe, agudamente, que era a Casa e a história da família, que não era
senão uma sucessão de nascimentos e de mortes, que lhe dariam as respostas inevitáveis.
Como compreender o grande mecanismo da existência? Como desvendar os grandes
mistérios? Havia aqueles que perscrutavam os céus, com potentes telescópios ou
que, em laboratórios ou em quadros gigantescos, faziam experiências e equações
extraordinárias, que poucos entendem, para compreenderem a formulação do mundo.
Outros rendiam-se a uma fé contida em sagrados livros e aos conhecimentos que,
primeiramente transmitidos de boca a ouvido, eram agora, no dealbar do século
vinte e um, publicitados em livros, palestras e conferências. Mas ela, a
Criança, escolhia uma via diferente. Escolhia uma via pessoal e
intransmissível, escolhia procurar na Casa a compreensão para o grande mistério
da existência, o sentido da vida.
Esta ideia não lhe ocorrera no
instante imediato em que decidira partir. Foi, antes, sendo construída ao longo
do trajeto pela autoestrada, que percorria, conduzindo devagar como se tivesse
consciência que uma etapa fundamental era justamente esta, a da viagem. O
primeiro troço, a Ponte Vasco da Gama. Só aqui teve perceção que abandonava a
capital, deixando para trás tudo o que constituía a sua vida presente. E,
também aqui, se interrogou se algum dia voltaria. Regressaria, findos os vinte
e um dias de férias ou, em alternativa, largava tudo e começava uma nova vida a
partir de um novo ponto e de uma nova realidade? O rio Tejo que ia ficando para
trás era a fronteira para um Sul que abandonara há trinta e seis anos, os anos
da sua vida adulta, e que agora pareciam nada terem acrescentado a si própria; era
como se todo o entendimento necessário para a compreensão da existência lhe tivesse
sido revelado na infância, e, agora, a ela voltasse, procurando recuperar o
todo em profundidade que lhe havia escapado.
Mas foi, definitivamente, a
passagem na portagem que marcou o início do seu trajeto para Sul como
caminheiro que empreende um trajeto de peregrinação. Lembrou-se da catedral de
São Tiago, ponto de chegada de tantos milhares de peregrinos e pensou na Casa, a
sua catedral. O seu lugar sagrado. Porque todo o lugar que se ama é sagrado e a
Criança tinha amado aquele espaço, que lhe dera abrigo durante tantos anos
quantos os da infância. E é essa proteção que todo o peregrino procura, quando
inicia um trajeto, é o ponto de chegada que o move e lhe dá alento para
avançar, apesar das dificuldades com as quais se possa deparar. Ainda que o
ponto de chegada possa ser uma miragem de um sonho que se constrói ao longo de
uma vida. Talvez fosse isso mesmo que se passasse com a Criança. Talvez que, ao
cruzar a portagem, antevisse a Casa na sua singularidade perdida de lar
perfeito, porque habitado pelas Avós, hoje mortas. Talvez que, afinal, fosse um
equívoco aquilo que a movia em direção a Sul.
Depois da primeira placa de desvio
para Évora, parou numa estação de serviço. Precisava de andar um pouco, tomar
um café e sentar-se a refletir. Na verdade, desde à noite, no dia anterior, ao
serão, que ainda não pensara exatamente sobre o que ia fazer. Fora tudo muito
rápido. Mandara a mensagem ao seu chefe e fizera a mala. Mal conseguira dormir.
Apenas umas quatro ou cinco horas para repousar e, logo de madrugada, mal
nascera o dia, descera para a garagem a preparar o carro e fora abastecer-se de
gasolina. Pusera-se à estrada. O caminho estava fixado na sua memória como algo
que não pode jamais ser apagado, embora já não fizesse o trajeto há décadas.
Desde a morte da Avó que não tornara a visitar a Casa, que permanecera desde
então fechada. Por isso, pareceu-lhe acolhedor aquele local de paragem no vazio
cinzento de uma autoestrada onde quase se não cruzara com outros
automobilistas. «Tanta estrada e tão pouca gente», pensara a Criança, mas
agora, na estação de serviço, estão estacionados seis ou sete automóveis e há
algum movimento de pessoas na zona da cafetaria e da esplanada. Pediu um café,
sem açúcar, e sentou-se também no exterior, numa mesa contígua a uma família em
viagem. São espanhóis, nota-se, sobretudo, por uma outra vivacidade na entoação
da língua, que no português é mais densa e melancólica, e por um gesticular
vivo no acompanhamento da linguagem. «É este um povo aguerrido», pensa. E,
então, surge-lhe uma recordação muito clara da boa disposição das Avós e dos
ditos divertidos, apesar de uma vida tão pobre e tão sacrificada.
Passados não mais do que cinco
minutos, a família estrangeira partiu, num arraial de alegria, ficando a
Criança sozinha na esplanada. Pôde então observar melhor o espaço, resguardado da
beira da autoestrada, e, nos largos vasos de barro e nas plantas, pôde
descobrir já uma feição característica da província alentejana. Estava um dia
de céu claro e havia um vento outonal que ainda não era demasiado frio. Pensou
então, «Vinte e um dias para tomar uma decisão. Vinte e um dias para decidir o
que fazer com a Casa; o que fazer com a minha vida? Vinte e um dias para
recuperar todo um passado inteiro. Vender a Casa? Recuperar a Casa?
Reconstruí-la? Deixá-la abandonada?». Era como se, nestes vagos pensamentos
repetitivos, a Criança procurasse estabelecer um elo entre a súbita decisão da
partida e o ponto de chegada. Mas, no fundo, quando decidira partir não estava
em causa o fazer mas sim o ser. Era a procura consciente de si mesma no espaço
da Casa a razão da sua decisão. Na verdade, este regresso era sobretudo um
regresso no tempo e não no espaço. Justamente o que não sabia se era possível
de realizar. Mas trouxera consigo o Caderno manuscrito da Avó, e seria através
dele que se iria guiar. E lembrou-se de um primeiro registo, dissera uma vez
uma cigana à Avó que ela atravessaria duas vezes o Tejo.
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