3.
«A rosa que se colhe, passados
trinta e seis anos, é a mesma rosa que se deixou na flor da idade»?, a Criança
não sabe responder a esta questão; pelo menos ainda não sabe neste momento em
que chega à aldeia, depois de uma viagem de cerca de duas horas e em que ficou
para trás todo um modo de vida mais recente.
Na chegada, a Criança reconhece
tudo como igual – a mesma rua íngreme, em descida, e o mesmo casario, casas
baixas e silenciosas – e a Casa, uma entre tantas, mas única na singularidade
do afeto. O silêncio é agora um outro silêncio; tem uma outra natureza, pois é
congeminado pela ausência de todos aqueles que entretanto partiram. E são
muitos, quase duas gerações se despediram da vida, deixando um património de valor. É em busca do sentido desse
património valioso que a Criança
empreendeu esta viagem. Mas que património é esse afinal? Uma Casa, entre
tantas, numa pequena aldeia, não tem senão o valor afetivo ou, então, é nisso
que reside a sua intenção, a Casa significa para si a raiz da descoberta de um
propósito de vida. Ali nasceram e morreram os Avós. Ali viveu uma parte
significativa da vida. Ali parece estar a resposta para a sua questão – «qual é
o sentido»? A Criança não sai imediatamente do automóvel. Primeiro quer escutar
a natureza silenciosa das coisas e observar tudo em seu redor. É, a uma certa
distância, que olha para o exterior da Casa para perceber se deve mesmo entrar
ou, e cruza um novo pensamento o seu espírito, se não será melhor afinal
regressar a Lisboa hoje mesmo. Durante o caminho, a Criança estava cheia de uma
certeza, a mesma certeza que lhe dera o impulso para partir. No entanto, agora,
na luz da manhã e confrontada pelo silêncio, desvanecia-se essa segurança. Deixa,
então, passar o tempo. Passa meia hora. Os seus pensamentos são contraditórios.
Na distância do dia anterior, aquando do sonho e da memória, a sua decisão de
regressar à Casa parecia certa e justa; agora, contudo, tem de se confrontar
com a realidade e a Casa parece-lhe ser apenas um edifício abandonado numa
aldeia remota e sem nele encontrar o vislumbre da poesia de que estava
revestida nos seus pensamentos e, portanto, sem valor. Mas, sim, deve entrar. Os mortos exigem-lhe esse gesto de
respeito.
Dentro da Casa, como seria de esperar,
adensa-se o silêncio da rua. Abre a portada de uma janela para deixar entrar a
claridade e os raios da luz penetram inundando o espaço que assim se ilumina.
Tudo igual. Tudo exatamente igual. Nenhum objeto tinha mudado de lugar. Cada
coisa no sítio de sempre. Pensa, então, «a argila da Casa dura tanto quanto os
minerais dos ossos». Quase não havia pó. O Pai, ao longo destes anos,
contratara o serviço das Primas para a limpeza e manutenção da Casa. E
percebia-se que essa era a forma do Pai lidar com a morte; mantendo tudo aquilo
que era material cuidado e intacto. Mas, por entre esta imobilidade das coisas,
a Criança sentia um frio que era como que um sentimento novo a despertar em si
mesma uma diferente memória do passado, que agora era triste e desiludida.
«Aprende
a morrer e aprenderás a viver», ou seria antes «Aprende a viver e aprenderás a
morrer»?, não se conseguia recordar com exatidão da frase que algures no tempo
lera num livro sobre a viagem das viagens; contudo, e todavia, queria-lhe
parecer que era indiferente a formulação, pois em qualquer um dos casos estava
presente a ideia da vida como justificando a morte ou o inverso, que era igual,
a morte como justificando a vida. Nunca como agora, a Criança percebe como é
importante esta aprendizagem – aprender a morrer para aprender a viver tanto
quanto aprender a viver para aprender a morrer. E os seus mortos pareciam
agudamente lembrar-lhe como isso era necessário para compreender o sentido da
existência, que era afinal o que trouxera a Criança até à Casa. De facto, a
Criança sabia, como qualquer outra pessoa, como sacrificar dez anos de vida
para obter um diploma de estudos superiores, tal como sabia como sacrificar
muitos mais anos de vida para ter um emprego, um automóvel, ou uma casa; isto
era o que era comum a nível do que se aprende na sociedade, aquilo que a
sociedade ensina e espera dos indivíduos. O que, neste momento, a Criança quer
aprender tem um outro nível de grandeza. E isto a sociedade não é capaz de
ensinar. Tem de ser o próprio indivíduo a descobrir por si mesmo: «aprender a
viver para aprender a morrer ou o seu inverso». E parecem-lhe auspiciosas na
consecução deste seu propósito as palavras que vê num pequeno azulejo branco,
com rebordo azul e florido, onde está inscrita a máxima que sempre orientou na
vida a Avó, «Tu podes, assim tu queiras». Justamente o alento que precisava
estava inscrito na parede da sala da Casa. Parecia-lhe, assim, que tudo estava
plenamente certo e ajustado à realidade da sua decisão de responder à grande
questão que se apresenta no seu espírito – «qual é o sentido da vida». Ou seja,
nada para a Criança é impossível.
Precisa,
entretanto, de se conectar com a realidade. A Casa não tem televisão, mas
possui uma telefonia antiga. A Criança liga-a, para experimentar se ainda
funciona, e é agradável ouvir a voz de um locutor de rádio que passa em revista
os principais acontecimentos da semana. É, hoje, sexta-feira, doze de outubro,
e a Criança inicia hoje também uma busca interior. O que sabe do mundo não é
favorável, a crise social e económica no país e na Europa e a guerra na Síria
são algumas das notícias que são transmitidas e que lhe não pacificam o
espírito, habitualmente tranquilo, que agora se agita perante o caos no mundo.
Mas, afinal, tudo está tão longe neste momento de si mesma e a construção da
paz é, como muito bem sabe, um trabalho mais individual do que coletivo. É no
seio de cada um que se cultiva um coração mais pacífico que congregado de
muitos pode transformar a realidade. «Talvez seja a hora de muitos, na natureza
de si, despertarem para uma nova consciência», pensa.
Pega,
agora, retirando da parede, no pequeno azulejo com a inscrição e ocorre-lhe que
este azulejo funciona para si própria como uma estela maia onde está gravado o
que de mais importante é necessário fixar sobre um determinado período de
tempo. «Tu podes, assim tu queiras». Convictamente, a Criança corre suavemente
os dedos sobre cada uma das letras destas palavras que quer que fiquem gravadas
no seu espírito. E nada mais há para acrescentar. «Tu podes, assim tu queiras».
E, como pela ação de um mantra que se repete, a mente da Criança encontra nesta
ladainha um bálsamo revitalizador para o instante presente. «Tu podes, assim tu
queiras». Acorda deste torpor, subitamente, quando, tão perto e tão longe,
tangem os sinos da igreja na aldeia, rompendo o silêncio, e a clara luz do
meio-dia lembra à Criança que ela está viva no momento presente.