sábado, 19 de outubro de 2024

3.

«A rosa que se colhe, passados trinta e seis anos, é a mesma rosa que se deixou na flor da idade»?, a Criança não sabe responder a esta questão; pelo menos ainda não sabe neste momento em que chega à aldeia, depois de uma viagem de cerca de duas horas e em que ficou para trás todo um modo de vida mais recente.

 

Na chegada, a Criança reconhece tudo como igual – a mesma rua íngreme, em descida, e o mesmo casario, casas baixas e silenciosas – e a Casa, uma entre tantas, mas única na singularidade do afeto. O silêncio é agora um outro silêncio; tem uma outra natureza, pois é congeminado pela ausência de todos aqueles que entretanto partiram. E são muitos, quase duas gerações se despediram da vida, deixando um património de valor. É em busca do sentido desse património valioso que a Criança empreendeu esta viagem. Mas que património é esse afinal? Uma Casa, entre tantas, numa pequena aldeia, não tem senão o valor afetivo ou, então, é nisso que reside a sua intenção, a Casa significa para si a raiz da descoberta de um propósito de vida. Ali nasceram e morreram os Avós. Ali viveu uma parte significativa da vida. Ali parece estar a resposta para a sua questão – «qual é o sentido»? A Criança não sai imediatamente do automóvel. Primeiro quer escutar a natureza silenciosa das coisas e observar tudo em seu redor. É, a uma certa distância, que olha para o exterior da Casa para perceber se deve mesmo entrar ou, e cruza um novo pensamento o seu espírito, se não será melhor afinal regressar a Lisboa hoje mesmo. Durante o caminho, a Criança estava cheia de uma certeza, a mesma certeza que lhe dera o impulso para partir. No entanto, agora, na luz da manhã e confrontada pelo silêncio, desvanecia-se essa segurança. Deixa, então, passar o tempo. Passa meia hora. Os seus pensamentos são contraditórios. Na distância do dia anterior, aquando do sonho e da memória, a sua decisão de regressar à Casa parecia certa e justa; agora, contudo, tem de se confrontar com a realidade e a Casa parece-lhe ser apenas um edifício abandonado numa aldeia remota e sem nele encontrar o vislumbre da poesia de que estava revestida nos seus pensamentos e, portanto, sem valor. Mas, sim, deve entrar. Os mortos exigem-lhe esse gesto de respeito.

 

             Dentro da Casa, como seria de esperar, adensa-se o silêncio da rua. Abre a portada de uma janela para deixar entrar a claridade e os raios da luz penetram inundando o espaço que assim se ilumina. Tudo igual. Tudo exatamente igual. Nenhum objeto tinha mudado de lugar. Cada coisa no sítio de sempre. Pensa, então, «a argila da Casa dura tanto quanto os minerais dos ossos». Quase não havia pó. O Pai, ao longo destes anos, contratara o serviço das Primas para a limpeza e manutenção da Casa. E percebia-se que essa era a forma do Pai lidar com a morte; mantendo tudo aquilo que era material cuidado e intacto. Mas, por entre esta imobilidade das coisas, a Criança sentia um frio que era como que um sentimento novo a despertar em si mesma uma diferente memória do passado, que agora era triste e desiludida.

 

            «Aprende a morrer e aprenderás a viver», ou seria antes «Aprende a viver e aprenderás a morrer»?, não se conseguia recordar com exatidão da frase que algures no tempo lera num livro sobre a viagem das viagens; contudo, e todavia, queria-lhe parecer que era indiferente a formulação, pois em qualquer um dos casos estava presente a ideia da vida como justificando a morte ou o inverso, que era igual, a morte como justificando a vida. Nunca como agora, a Criança percebe como é importante esta aprendizagem – aprender a morrer para aprender a viver tanto quanto aprender a viver para aprender a morrer. E os seus mortos pareciam agudamente lembrar-lhe como isso era necessário para compreender o sentido da existência, que era afinal o que trouxera a Criança até à Casa. De facto, a Criança sabia, como qualquer outra pessoa, como sacrificar dez anos de vida para obter um diploma de estudos superiores, tal como sabia como sacrificar muitos mais anos de vida para ter um emprego, um automóvel, ou uma casa; isto era o que era comum a nível do que se aprende na sociedade, aquilo que a sociedade ensina e espera dos indivíduos. O que, neste momento, a Criança quer aprender tem um outro nível de grandeza. E isto a sociedade não é capaz de ensinar. Tem de ser o próprio indivíduo a descobrir por si mesmo: «aprender a viver para aprender a morrer ou o seu inverso». E parecem-lhe auspiciosas na consecução deste seu propósito as palavras que vê num pequeno azulejo branco, com rebordo azul e florido, onde está inscrita a máxima que sempre orientou na vida a Avó, «Tu podes, assim tu queiras». Justamente o alento que precisava estava inscrito na parede da sala da Casa. Parecia-lhe, assim, que tudo estava plenamente certo e ajustado à realidade da sua decisão de responder à grande questão que se apresenta no seu espírito – «qual é o sentido da vida». Ou seja, nada para a Criança é impossível.

 

            Precisa, entretanto, de se conectar com a realidade. A Casa não tem televisão, mas possui uma telefonia antiga. A Criança liga-a, para experimentar se ainda funciona, e é agradável ouvir a voz de um locutor de rádio que passa em revista os principais acontecimentos da semana. É, hoje, sexta-feira, doze de outubro, e a Criança inicia hoje também uma busca interior. O que sabe do mundo não é favorável, a crise social e económica no país e na Europa e a guerra na Síria são algumas das notícias que são transmitidas e que lhe não pacificam o espírito, habitualmente tranquilo, que agora se agita perante o caos no mundo. Mas, afinal, tudo está tão longe neste momento de si mesma e a construção da paz é, como muito bem sabe, um trabalho mais individual do que coletivo. É no seio de cada um que se cultiva um coração mais pacífico que congregado de muitos pode transformar a realidade. «Talvez seja a hora de muitos, na natureza de si, despertarem para uma nova consciência», pensa.

 

            Pega, agora, retirando da parede, no pequeno azulejo com a inscrição e ocorre-lhe que este azulejo funciona para si própria como uma estela maia onde está gravado o que de mais importante é necessário fixar sobre um determinado período de tempo. «Tu podes, assim tu queiras». Convictamente, a Criança corre suavemente os dedos sobre cada uma das letras destas palavras que quer que fiquem gravadas no seu espírito. E nada mais há para acrescentar. «Tu podes, assim tu queiras». E, como pela ação de um mantra que se repete, a mente da Criança encontra nesta ladainha um bálsamo revitalizador para o instante presente. «Tu podes, assim tu queiras». Acorda deste torpor, subitamente, quando, tão perto e tão longe, tangem os sinos da igreja na aldeia, rompendo o silêncio, e a clara luz do meio-dia lembra à Criança que ela está viva no momento presente.


 

         


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