sábado, 3 de maio de 2025

 6.

            Um vento suão, extemporâneo, fora de época, desceu à planície durante a tarde; e, como se os deuses batessem à porta, a cada rajada mais forte e quente, a Criança sentiu-se acordar do torpor em que nos últimos momentos mergulhara. Eram, agora, quinze horas, e pensou, vagamente, em fechar a janela que abrira na sua chegada para deixar entrar o ar e libertar o ambiente da Casa de uma atmosfera densa e pesada; contudo não o fez. O vento era suficientemente ruidoso, não para inquietar a Criança, mas para despertar nela o desejo de ação, que, na situação em que se encontrava, não podia ser senão uma ação do espírito, uma ação de natureza mental.

 

            Primeiro, fruto talvez do silêncio em que estava mergulhada interiormente, as primeiras duas palavras, «Salve Regina», afloraram na mente da Criança, e, como que num cântico harmonioso, apenas audível no seu cérebro, as palavras do hino tornavam sagrado o silêncio, que apenas era entrecortado pelas rajadas do vento; e, subitamente, a Criança percebeu que a «Mãe de Misericórdia», sua esperança, se tornava, em seu redor, algo vivo, que se materializava numa paz profunda, a circundar o espaço, e que a oração, em cântico, surgia, nessa melodia encantatória, em latim, e ia sendo repetida na sua mente uma, duas, infinitas vezes, como se desfiasse as contas de um rosário. E era justamente como «exsules filii Evae» que a Criança se sentia, neste que era e tinha sido um «vale de lágrimas» para tantos antes de si e para si mesma agora também. Mas a oração que no seu cérebro ouvia, belíssima melodia, como se fosse cantada por uma soprano de voz harmoniosa, terminava magistralmente num enlevo «O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria». O que era o suficiente para se sentir como que embalada num regaço de mãe e para sempre protegida, através de um hino que se traduzia em beleza e paz. E, de facto, não sabia dizer se era a melodia, ou se eram as palavras em latim, que ecoavam na sua mente, o que rompia esta solidão das pessoas comuns, como se uma companhia familiar se instalasse a seu lado, e a compreensão e o medo da morte se tornassem desnecessários («Ah, não tenhas medo de morrer» era a tradução que fazia das palavras fragmentadas que a sua mente relembrava na distância de trinta e seis anos talvez, quando, na infância, as escutara e cantara… e quase, neste momento, não era capaz de se lembrar da sua própria idade – sete, catorze, cinquenta anos? – tinha talvez, estranha mas absolutamente, vencido, por instantes, a barreira do tempo e era indiferente saber quantos anos tinha).

 

            A Criança deslizou sem esforço para onde a mente já não era necessária; já não havia o hino cantado no seu cérebro; e à sua volta podia perceber que o vento parecia sossegar, não sendo tão ruidoso. Algo ténue regressou com a Criança ao espaço da Casa. Seria uma presença viva de quietude que, tanto quanto se conseguia lembrar, sempre estivera presente na Casa; num tempo que era anterior ao advento da tecnologia, em que, agora, se quisesse, numa simples pesquisa na internet, tudo, ou quase tudo, poderia ser encontrado, sem colinas nem vales. A internet era, antes, um longo planalto, longe da paz eterna. E, neste hiato, em que saía da sua mente para regressar ao seu ponto de referência, sentia que ela, a mente, deixara como que uma pegada, um sinal visível, de que o silêncio está na origem de todas as coisas, visíveis e invisíveis.

 

            Precisava, agora, de continuar a explorar o espaço da Casa. A Casa não era um espaço vazio. Repleto de objetos e de mobiliário antigo, a Criança encontrava aqui, neste local, os sinais de que o vazio puro não existe. Lá fora, o tanger dos sinos continuava a sinalizar a passagem do tempo numa cadência constante e, talvez por isso, despertou a atenção da Criança um antigo relógio de pêndulo pendurado numa das paredes da sala. Naturalmente, estava parado. E, desse modo, se podia entender que, ao entrar na Casa, a Criança tinha acedido a um tempo sem tempo, como se pudesse assistir ao desaparecimento de uma pedra, de uma flor, de uma estrela ou de uma galáxia ou ao seu inverso. Ou seja, o ponto a partir do qual tudo brota e nasce – a pedra, a flor, a estrela, a galáxia.

 

            Então, como que procedendo a um ritual, procurou uma cadeira para poder chegar à altura do relógio, pendurado alto na parede. Subiu para cima da cadeira e pôde, desta forma, admirar melhor esta peça de arte trabalhada em madeira antiga. Abriu a porta de vidro e encontrou a chave de dar corda ao relógio no interior da caixa. O mecanismo era em metal e o pêndulo inerte era um objeto de rara beleza. Resolveu acertar os ponteiros. Consultou o seu relógio de quartzo, peça mais exata na medição do tempo, e verificou que eram cinco horas da tarde, menos quatro minutos. Pareceu-lhe irrelevante contar com os quatro minutos que faltavam para as cinco horas e acertou os ponteiros na hora certa e deu corda ao relógio. Todo o mecanismo começou a funcionar e o pêndulo balançava à cadência exata do tempo que o relógio media. Eis como funciona o relógio. Fechou a porta de vidro. E arrumou a cadeira junto à mesa da sala de jantar. O compasso do pêndulo do relógio era audível na casa.

 

            Na verdade, percebia, agora, a Criança, que o mais profundo dos silêncios tinha sido rompido por esta cadência ritmada do som do relógio a funcionar. Já não havia senão brancura à sua volta. Também na sua mente era assim. Os pensamentos corriam e sucediam-se uns aos outros como se divagasse e a pergunta era «Queres aprender o quê»? De facto, a partida abrupta de Lisboa evidenciava uma urgência em encontrar uma resposta para si mesma em relação à sua existência. E, neste momento, parecia-lhe que tudo era apenas um processo mental, independentemente do sítio onde se encontrasse, «Ou não seria assim»? «Poderia ser diferente»?

 

            Havia agora um hiato no tempo – as horas do tanger dos sinos, as horas do relógio de pêndulo, as horas do seu relógio de quartzo. Qual então a hora certa, a hora de partir ou de chegar. A hora de permanecer, até quando?




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