6.
Um
vento suão, extemporâneo, fora de época, desceu à planície durante a tarde; e,
como se os deuses batessem à porta, a cada rajada mais forte e quente, a
Criança sentiu-se acordar do torpor em que nos últimos momentos mergulhara.
Eram, agora, quinze horas, e pensou, vagamente, em fechar a janela que abrira
na sua chegada para deixar entrar o ar e libertar o ambiente da Casa de uma
atmosfera densa e pesada; contudo não o fez. O vento era suficientemente
ruidoso, não para inquietar a Criança, mas para despertar nela o desejo de
ação, que, na situação em que se encontrava, não podia ser senão uma ação do
espírito, uma ação de natureza mental.
Primeiro,
fruto talvez do silêncio em que estava mergulhada interiormente, as primeiras
duas palavras, «Salve Regina»,
afloraram na mente da Criança, e, como que num cântico harmonioso, apenas
audível no seu cérebro, as palavras do hino tornavam sagrado o silêncio, que
apenas era entrecortado pelas rajadas do vento; e, subitamente, a Criança
percebeu que a «Mãe de Misericórdia», sua esperança, se tornava, em seu redor,
algo vivo, que se materializava numa paz profunda, a circundar o espaço, e que
a oração, em cântico, surgia, nessa melodia encantatória, em latim, e ia sendo
repetida na sua mente uma, duas, infinitas vezes, como se desfiasse as contas
de um rosário. E era justamente como «exsules filii Evae» que a Criança se
sentia, neste que era e tinha sido um «vale de lágrimas» para tantos antes de
si e para si mesma agora também. Mas a oração que no seu cérebro ouvia, belíssima
melodia, como se fosse cantada por uma soprano de voz harmoniosa, terminava
magistralmente num enlevo «O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria». O que era o
suficiente para se sentir como que embalada num regaço de mãe e para sempre
protegida, através de um hino que se traduzia em beleza e paz. E, de facto, não
sabia dizer se era a melodia, ou se eram as palavras em latim, que ecoavam na
sua mente, o que rompia esta solidão das pessoas comuns, como se uma companhia
familiar se instalasse a seu lado, e a compreensão e o medo da morte se
tornassem desnecessários («Ah, não tenhas medo de morrer» era a tradução que
fazia das palavras fragmentadas que a sua mente relembrava na distância de
trinta e seis anos talvez, quando, na infância, as escutara e cantara… e quase,
neste momento, não era capaz de se lembrar da sua própria idade – sete,
catorze, cinquenta anos? – tinha talvez, estranha mas absolutamente, vencido,
por instantes, a barreira do tempo e era indiferente saber quantos anos tinha).
A
Criança deslizou sem esforço para onde a mente já não era necessária; já não
havia o hino cantado no seu cérebro; e à sua volta podia perceber que o vento
parecia sossegar, não sendo tão ruidoso. Algo ténue regressou com a Criança ao
espaço da Casa. Seria uma presença viva de quietude que, tanto quanto se
conseguia lembrar, sempre estivera presente na Casa; num tempo que era anterior
ao advento da tecnologia, em que, agora, se quisesse, numa simples pesquisa na
internet, tudo, ou quase tudo, poderia ser encontrado, sem colinas nem vales. A
internet era, antes, um longo planalto, longe da paz eterna. E, neste hiato, em
que saía da sua mente para regressar ao seu ponto de referência, sentia que
ela, a mente, deixara como que uma pegada, um sinal visível, de que o silêncio
está na origem de todas as coisas, visíveis e invisíveis.
Precisava,
agora, de continuar a explorar o espaço da Casa. A Casa não era um espaço
vazio. Repleto de objetos e de mobiliário antigo, a Criança encontrava aqui, neste
local, os sinais de que o vazio puro não existe. Lá fora, o tanger dos sinos
continuava a sinalizar a passagem do tempo numa cadência constante e, talvez
por isso, despertou a atenção da Criança um antigo relógio de pêndulo pendurado
numa das paredes da sala. Naturalmente, estava parado. E, desse modo, se podia
entender que, ao entrar na Casa, a Criança tinha acedido a um tempo sem tempo,
como se pudesse assistir ao desaparecimento de uma pedra, de uma flor, de uma
estrela ou de uma galáxia ou ao seu inverso. Ou seja, o ponto a partir do qual
tudo brota e nasce – a pedra, a flor, a estrela, a galáxia.
Então,
como que procedendo a um ritual, procurou uma cadeira para poder chegar à
altura do relógio, pendurado alto na parede. Subiu para cima da cadeira e pôde,
desta forma, admirar melhor esta peça de arte trabalhada em madeira antiga.
Abriu a porta de vidro e encontrou a chave de dar corda ao relógio no interior
da caixa. O mecanismo era em metal e o pêndulo inerte era um objeto de rara
beleza. Resolveu acertar os ponteiros. Consultou o seu relógio de quartzo, peça
mais exata na medição do tempo, e verificou que eram cinco horas da tarde,
menos quatro minutos. Pareceu-lhe irrelevante contar com os quatro minutos que
faltavam para as cinco horas e acertou os ponteiros na hora certa e deu corda
ao relógio. Todo o mecanismo começou a funcionar e o pêndulo balançava à
cadência exata do tempo que o relógio media. Eis como funciona o relógio.
Fechou a porta de vidro. E arrumou a cadeira junto à mesa da sala de jantar. O
compasso do pêndulo do relógio era audível na casa.
Na
verdade, percebia, agora, a Criança, que o mais profundo dos silêncios tinha
sido rompido por esta cadência ritmada do som do relógio a funcionar. Já não
havia senão brancura à sua volta. Também na sua mente era assim. Os pensamentos
corriam e sucediam-se uns aos outros como se divagasse e a pergunta era «Queres
aprender o quê»? De facto, a partida abrupta de Lisboa evidenciava uma urgência
em encontrar uma resposta para si mesma em relação à sua existência. E, neste
momento, parecia-lhe que tudo era apenas um processo mental, independentemente
do sítio onde se encontrasse, «Ou não seria assim»? «Poderia ser diferente»?
Havia
agora um hiato no tempo – as horas do tanger dos sinos, as horas do relógio de
pêndulo, as horas do seu relógio de quartzo. Qual então a hora certa, a hora de
partir ou de chegar. A hora de permanecer, até quando?
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