segunda-feira, 7 de julho de 2025

 8.

              É noite já. Na rua, acenderam-se as luzes da iluminação pública e há como que uma claridade vinda de fora que invade o interior da casa como se um clarão dos céus, o luar e as estrelas, estivesse tão perto de si que fosse quase possível sentir na pele o calor dessa luz. E a Criança sente-se, neste momento, como se sozinha estivesse a olhar para o mundo e mais ninguém, senão si mesma, pudesse observar esta realidade dos astros, cuja luz está como que aprisionada dentro do espaço onde também a Criança se encontra e tudo fosse, tão só e apenas, um universo de possibilidades.

 

            Mas a Casa já mostrou tudo à Criança; tudo aquilo que podia ser visto foi visto – requer-se, entretanto, um outro entendimento para que a sua viagem não tenha sido em vão. A Criança retira, então, da sua pequena mala o Caderno da Avó que lhe fora entregue pelo Pai há trinta e seis anos. Ao longo destes anos, não raro, folheava o Caderno e lia os apontamentos breves que narravam uma história de vida martirizada por sofrimentos e dores que a Criança nunca conhecera na sua existência, poupada que tinha sido a um tempo em que o suor do rosto pagava a côdea e a migalha de pão a pais e filhos. Dispõe-se, então, a ler de novo estas páginas manuscritas, que o tempo ainda não apagou, e encara este exercício de leitura como um último impulso para entender o intervalo que separa quem lê de quem escreve. Viagem no tempo, que não tem poder sobre o fluxo da sua vida, pensa a Criança, porque estas feridas antigas não lhe pertencem.

 

            A noite está calma e agradável. O vento da tarde desapareceu por completo e a aragem que se faz sentir é suave e convidativa a um serão passado no Quintal da Casa. É, justamente, essa a decisão que a Criança toma. Abre a porta para o Quintal, perfeitamente iluminado pelas lâmpadas dos candeeiros da rua, e percebe que pode ler sem dificuldade a escrita da Avó.

 

            Os apontamentos no Caderno são perfeitamente triviais e a Criança percebe que no fim da jornada da vida não existe nada que deixemos aos outros que tenha qualquer relevância. Ou seja, as coisas só fazem sentido e só têm significado, quando existe uma sintonia entre o ser e o ato. Quando essa sintonia acaba, nomeadamente quando se morre, o que fica de material é pouco ou nada relevante para os outros. Para a Avó, aquele Caderno fora uma espécie de tesouro que guardara em vida como testemunho do ato de ser quem era; mas, na verdade, só para ela mesma essa criação entrava no campo da consciência. De facto, o ato criativo principal, sendo um mistério, a ele apenas tem acesso o criador; o outro, aquele que observa a obra, vive num intervalo de tempo em que não é possível que a consciência brote numa dimensão idêntica. Por isso, essas feridas antigas da Avó são para a Criança, hoje, dores aprisionadas num passado do qual ela não tem, porque não pode ter, a consciência perfeita.

 

            O Caderno é, na verdade, uma espécie de última morada de alguém que escolheu deixar um legado ao mundo através da palavra. Mas, o devido lugar de um homem ou de uma mulher é primeiro aqui na terra; querer aceder ao tempo eterno da eternidade é um exercício de imaginação e o Caderno é como que a visão profana que a Avó tinha da imortalidade. Na verdade, tudo é como deve ser; e o Caderno não durará o suficiente para satisfazer esse anseio da Avó, porque, hoje em dia, são as redes sociais e é a internet que confere ao homem a visibilidade necessária para eliminar a convicção, verdadeira contudo, de que somos seres em desagregação e que a nossa passagem pela vida é demasiado breve e insignificante.

 

            A Criança fecha o Caderno. Não quer regressar àquelas dores. É este um caminho que está consciente que não quer percorrer. Contudo, para tomar essa decisão, precisa de calcorrear uma outra estrada, fazer uma nova vida a partir do nada. Como é isso possível?, interroga-se, se o impulso da Criança foi regressar à Casa, como que para recuperar a memória do passado, de modo a torná-la viva no seu presente. É esta a miséria e a grandeza da sua ação. Precisa, então, de atribuir valor a esta ação para que tudo mude em si. Se a desvalorizar, o contrário também sucederá. É a projeção que cria o significado. E parece entender, agora, a Criança que projetou uma fantasia na ação deste dia – a viagem não foi mais do que desenvolver um processo insensato, que pôs em marcha impetuosamente com uma urgência sem sentido. Não quer, por isso mesmo, abalar, partir, num impulso súbito. Tem tempo para pensar. E é isso que fará. Trouxe consigo o computador pessoal. Irá escrever. Irá meditar. O tempo dura o suficiente para compor uma reflexão. E, então, neste momento, a Criança viu que o rasto de tristeza tinha desaparecido como uma onda, numa praia, desfeita em espuma.

 

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