domingo, 7 de setembro de 2025

10.

Agora escrevo:

 

escuto o tempo,

na delicadeza da noite, procurando

conhecer o futuro, como quem sabe de antemão as misérias e os sucessos

que são a dádiva do devir:

 

jornada do silêncio,

no milagre da vida diária, a que nos acostumamos,

e que dizemos,

por isso, que é banal – um sorriso

a um desconhecido na rua, um gesto de amor

para consigo mesmo, uma pausa no meio de uma tarefa difícil – e que precisa de encanto:

 

e quem se olha ao espelho percebe

que, de entre as imperfeições

do rosto, há uma beleza

própria,

única,

singular,

que é irrepetível

tal como no curso uma própria vida:

 

que vida haverei?,

serão os meus sonhos futuros

iguais aos meus sonhos de hoje?:

 

ou tudo não passará

de uma única

ausência de mim na trama da existência?:

 

limite firme do presente

é essa linha intransponível, qual cortina de névoa,

ou de sombra,

que não nos permite saber o que virá a ser no amanhã;

mas há algo sereno em mim

que aguarda

por esse tempo que não conheço,

fulgurante, mas velado,

que desabrocha, sem pressa de ser:

 

há algo de íntimo no coração da noite, que se apropria de nós,

e me conduz em direção ao próprio mundo

como se um quintal

fosse a esquina de uma rua

ou o largo de uma avenida no meio duma cidade deserta,

e, imóvel,

eu pudesse encontrar nesse silêncio

a voz que anuncia em oráculos o tempo vindouro:

 

bem sei que este momento é efémero:

tudo passa:

 

e eu sinto-me espectadora deste espetáculo que é a vida,

como se assistisse a um desenrolar

de acontecimentos,

estranhos a mim,

sem poder sequer comover-me,

porque no palco do mundo tudo o que me desassossega

são sentimentos,

cujo centro está fora de mim;

e eu escolho sentir apenas uma quietude imóvel

e triste

perante a diversidade da existência:

 

o cunho da sensibilidade que me rege permite-me, contudo,

perceber a beleza

intensa

da noite do dia seguinte a este,

em que

estarei acometida da razão

a viver a golfadas cada momento novo,

como se esta mesma noite nunca tivesse existido,

senão enquanto sonho da mente

numa lembrança para sempre distante:

 

talvez me despeça,

um dia,

de todas as memórias e deixem de haver quaisquer lembranças;

talvez me acometa

a vertigem própria dos dias vividos sem a espera

pelo amanhã,

sem o sonho vívido do futuro,

sem o anseio por algo novo e inesperado:

 

mas esse tempo ainda não chegou;

essa noite que virá,

depois desta,

ainda está no limbo das horas que hão de ser

também elas mortalha de outras noites:

 

por isso, não adormeço,

acorda-me

a necessidade premente de pensar

que se estou aqui

é porque é esse o lugar aonde eu devo estar;

e também não me quero despedir,

num adeus que encerra

uma vida,

porque, na dádiva do tempo que temos para viver,

o silêncio volta a nós, uma vez e outra vez e outra, desafiado

por uma presença suave

de quem se demorou mas regressa por trilhos novos,

e tantas vezes inesperados:

 

há, contudo, uma dor inusitada neste esfarelar

do tempo, na noite, qual côdea

que mastigamos

para mitigar uma fome

e que nos contempla, demoradamente, como se todo o universo

nos olhasse do alto e do alto nos escutasse

também a nós.