10.
Agora escrevo:
escuto o tempo,
na delicadeza da noite, procurando
conhecer o futuro, como quem sabe de antemão as
misérias e os sucessos
que são a dádiva do devir:
jornada do silêncio,
no milagre da vida diária, a que nos acostumamos,
e que dizemos,
por isso, que é banal – um sorriso
a um desconhecido na rua, um gesto de amor
para consigo mesmo, uma pausa no meio de uma tarefa
difícil – e que precisa de encanto:
e quem se olha ao espelho percebe
que, de entre as imperfeições
do rosto, há uma beleza
própria,
única,
singular,
que é irrepetível
tal como no curso uma própria vida:
que vida haverei?,
serão os meus sonhos futuros
iguais aos meus sonhos de hoje?:
ou tudo não passará
de uma única
ausência de mim na trama da existência?:
limite firme do presente
é essa linha intransponível, qual cortina de névoa,
ou de sombra,
que não nos permite saber o que virá a ser no amanhã;
mas há algo sereno em mim
que aguarda
por esse tempo que não conheço,
fulgurante, mas velado,
que desabrocha, sem pressa de ser:
há algo de íntimo no coração da noite, que se apropria
de nós,
e me conduz em direção ao próprio mundo
como se um quintal
fosse a esquina de uma rua
ou o largo de uma avenida no meio duma cidade deserta,
e, imóvel,
eu pudesse encontrar nesse silêncio
a voz que anuncia em oráculos o tempo vindouro:
bem sei que este momento é efémero:
tudo passa:
e eu sinto-me espectadora deste espetáculo que é a
vida,
como se assistisse a um desenrolar
de acontecimentos,
estranhos a mim,
sem poder sequer comover-me,
porque no palco do mundo tudo o que me desassossega
são sentimentos,
cujo centro está fora de mim;
e eu escolho sentir apenas uma quietude imóvel
e triste
perante a diversidade da existência:
o cunho da sensibilidade que me rege permite-me,
contudo,
perceber a beleza
intensa
da noite do dia seguinte a este,
em que
estarei acometida da razão
a viver a golfadas cada momento novo,
como se esta mesma noite nunca tivesse existido,
senão enquanto sonho da mente
numa lembrança para sempre distante:
talvez me despeça,
um dia,
de todas as memórias e deixem de haver quaisquer
lembranças;
talvez me acometa
a vertigem própria dos dias vividos sem a espera
pelo amanhã,
sem o sonho vívido do futuro,
sem o anseio por algo novo e inesperado:
mas esse tempo ainda não chegou;
essa noite que virá,
depois desta,
ainda está no limbo das horas que hão de ser
também elas mortalha de outras noites:
por isso, não adormeço,
acorda-me
a necessidade premente de pensar
que se estou aqui
é porque é esse o lugar aonde eu devo estar;
e também não me quero despedir,
num adeus que encerra
uma vida,
porque, na dádiva do tempo que temos para viver,
o silêncio volta a nós, uma vez e outra vez e outra, desafiado
por uma presença suave
de quem se demorou mas regressa por trilhos novos,
e tantas vezes inesperados:
há, contudo, uma dor inusitada neste esfarelar
do tempo, na noite, qual côdea
que mastigamos
para mitigar uma fome
e que nos contempla, demoradamente, como se todo o
universo
nos olhasse do alto e do alto nos escutasse
também a nós.
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