4.
Os
deuses tecem o manto que é a vida de cada homem. Quando a trama chega ao fim, o
ser confronta-se com o mistério da morte. Ninguém sabe o seu dia nem a sua hora
de passagem; apenas aqueles que tudo veem conhecem o destino e o momento.
Nisto, acreditava a Criança, e, desde há trinta e seis anos, que a sua mente
labutava no sonho que tivera, na precisa madrugada da morte da Avó. Fora um
sonho incomum, por ser muito nítido e com elementos muito precisos.
Habitualmente, os sonhos que tinha desvaneciam-se, quando acordava, perdendo-se
a memória daquilo que fora sonhado. Sempre era assim. Mas, naquela madrugada o
sonho fora muito diferente. Ficara como uma marca indelével no seu espírito
para sempre.
«E,
se eu for uma personagem numa história»?, pensa, agora que evoca de novo a
grande sala (muito grande, como no espaço de uma catedral antiga com paredes
revestidas de madeira escura), onde algumas figuras estão presentes. Primeiro,
num plano mais próximo, duas jovens, vestidas de cores claras, executam o
entrançado de duas colchas, dispostas no chão. São mantos muito compridos, que
vão sendo trabalhados pelas duas raparigas, cada uma delas debruçada sobre a
extremidade da sua colcha no chão. Assistindo a este trabalho de execução, num
outro plano, mais afastado e mais elevado, encontra-se um padre, sentado numa
cadeira alta, e rodeado de acólitos, como que presidindo a esta espécie de cerimónia.
Para além destes, está também, distintamente presente, a Criança. Encontra-se
no mesmo plano das duas jovens que executam as colchas, numa espécie de cochia
lateral de bancos de madeira escura e também ela assiste ao trabalho de
execução das colchas que é o motivo central deste episódio. A dado momento,
como tendo terminado a sua tarefa, as jovens dizem «tudo está consumado» e a
Criança desperta, na madrugada, com um sentimento de que assistiu a um evento
muito significativo na sua vida. Este sonho e tudo aquilo que ele contém ficará
para sempre consigo; justamente, porque na manhã desse dia o telefone tocou
anunciando duas mortes. Morrera a Avó e, inesperadamente também, morrera, nessa
mesma madrugada, um Primo. «Por quê, duas mortes quase coincidentes e quase em
simultâneo e, aparentemente, sem qualquer espécie de relação entre elas»?
Ninguém sabia explicar. A ninguém contou acerca do seu sonho na noite; mas,
então muito jovem, teria cerca de catorze anos, não conseguia esquecer este
evento como algo que deixou abalada a Criança em termos do aspeto dramático ou
quase romanceado da vida - «Se eu não sou a autora da minha história, quem é»?,
pergunta-se a si própria a Criança neste momento da sua existência.
A
Criança desligara, entretanto, a telefonia e a Casa regressara a um silêncio
sepulcral – a mesma espécie de silêncio, acredita, que se terá feito sentir
naquela longínqua madrugada, em que a Avó, no sono de uma noite, deixara de ver
tecida a história da sua vida para fazer a travessia sagrada. «E foi justo que
assim fosse», pensa, «pois é durante a noite, no sonho, que cada um de nós
percorre os caminhos da morte». E o momento exato não é um pouco mais cedo nem
um pouco mais tarde; é, sim, o instante em que o coração, cruzando uma ténue
linha invisível, para, despojado para sempre dos laços e dos afetos que o
prendiam à realidade material de uma existência física.
E,
agora, vê o seu lugar aqui na Casa, mais uma vez, como o lugar de alguém que
percorre o seu tempo terreno, na senda de todos quantos antes dela passaram
neste mundo e dele se despediram no espaço destas paredes muito brancas e,
pensa, «sempre silenciosas». Mas, ao mesmo tempo, percebe que a realidade atual
é de outra natureza. Morrer na Casa não se compadece com o que é mais comum –
morrer num hospital – e, nisso, o seu destino final não poderá ser muito
diferente do da maioria das pessoas, ligadas a máquinas e a aparelhos
eletrónicos que monitorizam a última respiração e a paragem no funcionamento
dos órgãos principais. E é bem verdade que ninguém morre de mão dada. A morte é
uma experiência individual e apenas pessoal – não admite um «nós». Contudo, e
isso era curioso, no sonho longínquo daquela madrugada de há trinta e seis anos
atrás, dois mantos se teciam e se concluíam no mesmo exato momento como que
fossem tecidos dentro de uma consciência superior que optasse por construir,
assim, um destino final coincidente. Era estranha e incomum a aparente mensagem
do sonho, e nisso, no seu sentido, não podia, hoje, deixar de pensar.
Mas a
morte alarga os limites do espaço até ao infinito – por isso, talvez, que o
lugar onde se morre seja relativamente secundário e que o que verdadeiramente
tenha importância seja a atitude com que morremos, ou seja, que consciência, ou
ausência dela, levamos connosco para a morte. «Tudo será como deve ser», pensa
a Criança. «Talvez que no paroxismo da morte a consciência do ser por um
instante se eleve a alturas inconcebíveis e que o tempo que aí, então, é
substituído pela intemporalidade, nivele na grandeza todos os seres. E, por
momentos, os temas mais profundos da existência, como a verdade, a compaixão, o
amor, a justiça se tornem equivalentes e indestrinçáveis».
De
novo, a Criança ouve o tanger dos sinos da igreja da aldeia. Curiosamente,
desde que se encontra dentro da Casa, tornou-se mais audível e sonora cada
badalada. Os sinos assinalam com toques diferentes a passagem do tempo e
fazem-se soar dia e noite de quinze em quinze minutos. São como um compasso de
espera até à hora seguinte. E, na aldeia, há um verdadeiro livro das horas, lembrando a cada um que é o tempo certo de
realizar qualquer uma das tarefas do dia ou da noite. É meio-dia e três
quartos. É a altura certa para pensar fazer uma ligeira refeição e passar em
revista os objetos da Casa e, principalmente, definir aquilo que pretende fazer
nas próximas horas, ou nos próximos dias. Não deve esquecer que está no gozo de
vinte e um dias de férias e que, deste modo, tudo na sua esfera pessoal é
legítimo e permitido. Pode, de facto, ficar na Casa; pode, de facto, regressar
hoje mesmo a Lisboa. O que pertencer ao seu destino se há de cumprir, como até
hoje se cumpriu cada uma das suas ações. Mas o que é certo é que, pela primeira
vez, em trinta e seis anos, se sente completamente livre em termos de escolhas.
Nada nem ninguém condiciona a Criança. A ninguém tem de dar conta daquilo que
decida fazer neste momento da sua vida. E, nesta forma de liberdade, parece-lhe
que tudo será como deve ser e que as suas escolhas serão justas e boas, como se
o próprio tempo, ou a sua intemporalidade, lhe sussurrassem «aqui espero».
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