9.
Agora escrevo:
o anjo bom
mitiga a sede da minha alma, agora que na noite
eu procuro os vestígios mais claros do amor em cada
passo que eu dou,
e, como uma borboleta que poisa numa mão humana
fechada e abandonada,
nesses caminhos da vida,
também eu quero voar e poisar nesse rochedo,
no centro de um coração, onde, pequenina como uma
flor,
singelamente,
eu possa permanecer como numa eternidade, sem medo:
do que sentes saudade?, interrogo-me
sem saber
porque o perguntei:
não penso num lugar em particular,
nem num momento vivido,
e respondo:
do amanhã, como se nesse vazio de ser ainda
estivesse já contida, com segurança, uma medida do
passado:
lembrança do vir a ser:
momentânea, atómica, vivida a cada momento, vivida a
cada instante,
o que será e já deixou de ser:
sim:
não há hiatos de vazio – a saudade é um contínuo modo
de estar –
é um labirinto sem saída senão a da morte:
por isso, entendo que o amor que eu procuro é um
silêncio
feito de respiração apenas e dele sinto
a saudade do que não vivi,
porque não aconteceu esse tempo de ser,
mas, na memória da imaginação,
revisito o dia e a hora
e o lugar
onde floresce o amor:
invisível movimento de maré imprevista:
posso esculpir
naquele rochedo que toquei
o verso que amanhecerá o amanhã
sempre tíbio
do cuidado que colocamos na construção do amor,
como quando numa conversa nos inquietamos com aquilo
que falamos
por receio de não ser exato o que dizemos
enquanto expressão de nós mesmos:
mas a dança da vida
não permite que ensaiemos os passos e cada um de nós
se deve entregar
ao movimento que advém da passagem do tempo – sem
amanhã
que seria a saudade que tenho agora
desse momento e lugar
que toca uma parte íntima de mim? –
mas a dança da vida
possui o rasgo extraordinário de fazer acontecer a
esperança saudosa
que,
sem contradição,
nos permite pressentir o que está para vir:
mas hesito
no vínculo do desejo:
o amor que procuro talvez não seja senão aquilo que
ilude
entre dois gestos – o querer e o ter –
e se apaga como uma vela que uma ligeira brisa
desvanece
antes que se cumpra,
no tempo,
um passado de memória:
é esta a sombra:
é esta a obscuridade:
para além do amor, nada mais tem a forma exata
e delicada
do cuidado que colocamos a procurá-lo,
do cuidado que é raiz
de árvore,
que nutre e alimenta,
que sustenta:
e, então, por maravilha, a noite enche-se de luz:
há uma ausência, mas o universo
responde
à minha sede, transbordando em claridade:
dissiparam-se as nuvens
e eu recomeço sem pressa
a busca subtil,
que é afinal a escuta do meu coração.
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