8.
É noite já.
Na rua, acenderam-se as luzes da iluminação pública e há como que uma claridade
vinda de fora que invade o interior da casa como se um clarão dos céus, o luar
e as estrelas, estivesse tão perto de si que fosse quase possível sentir na
pele o calor dessa luz. E a Criança sente-se, neste momento, como se sozinha
estivesse a olhar para o mundo e mais ninguém, senão si mesma, pudesse observar
esta realidade dos astros, cuja luz está como que aprisionada dentro do espaço
onde também a Criança se encontra e tudo fosse, tão só e apenas, um universo de
possibilidades.
Mas a
Casa já mostrou tudo à Criança; tudo aquilo que podia ser visto foi visto –
requer-se, entretanto, um outro entendimento para que a sua viagem não tenha
sido em vão. A Criança retira, então, da sua pequena mala o Caderno da Avó que
lhe fora entregue pelo Pai há trinta e seis anos. Ao longo destes anos, não
raro, folheava o Caderno e lia os apontamentos breves que narravam uma história
de vida martirizada por sofrimentos e dores que a Criança nunca conhecera na
sua existência, poupada que tinha sido a um tempo em que o suor do rosto pagava
a côdea e a migalha de pão a pais e filhos. Dispõe-se, então, a ler de novo
estas páginas manuscritas, que o tempo ainda não apagou, e encara este
exercício de leitura como um último impulso para entender o intervalo que
separa quem lê de quem escreve. Viagem no tempo, que não tem poder sobre o
fluxo da sua vida, pensa a Criança, porque estas feridas antigas não lhe
pertencem.
A
noite está calma e agradável. O vento da tarde desapareceu por completo e a
aragem que se faz sentir é suave e convidativa a um serão passado no Quintal da
Casa. É, justamente, essa a decisão que a Criança toma. Abre a porta para o
Quintal, perfeitamente iluminado pelas lâmpadas dos candeeiros da rua, e
percebe que pode ler sem dificuldade a escrita da Avó.
Os
apontamentos no Caderno são perfeitamente triviais e a Criança percebe que no
fim da jornada da vida não existe nada que deixemos aos outros que tenha
qualquer relevância. Ou seja, as coisas só fazem sentido e só têm significado,
quando existe uma sintonia entre o ser e o ato. Quando essa sintonia acaba, nomeadamente
quando se morre, o que fica de material é pouco ou nada relevante para os
outros. Para a Avó, aquele Caderno fora uma espécie de tesouro que guardara em
vida como testemunho do ato de ser quem era; mas, na verdade, só para ela mesma
essa criação entrava no campo da consciência. De facto, o ato criativo
principal, sendo um mistério, a ele apenas tem acesso o criador; o outro, aquele
que observa a obra, vive num intervalo de tempo em que não é possível que a
consciência brote numa dimensão idêntica. Por isso, essas feridas antigas da
Avó são para a Criança, hoje, dores aprisionadas num passado do qual ela não
tem, porque não pode ter, a consciência perfeita.
O
Caderno é, na verdade, uma espécie de última morada de alguém que escolheu deixar
um legado ao mundo através da palavra. Mas, o devido lugar de um homem ou de
uma mulher é primeiro aqui na terra; querer aceder ao tempo eterno da
eternidade é um exercício de imaginação e o Caderno é como que a visão profana
que a Avó tinha da imortalidade. Na verdade, tudo é como deve ser; e o Caderno
não durará o suficiente para satisfazer esse anseio da Avó, porque, hoje em
dia, são as redes sociais e é a internet que confere ao homem a visibilidade
necessária para eliminar a convicção, verdadeira contudo, de que somos seres em
desagregação e que a nossa passagem pela vida é demasiado breve e
insignificante.
A
Criança fecha o Caderno. Não quer regressar àquelas dores. É este um caminho
que está consciente que não quer percorrer. Contudo, para tomar essa decisão,
precisa de calcorrear uma outra estrada, fazer uma nova vida a partir do nada.
Como é isso possível?, interroga-se, se o impulso da Criança foi regressar à
Casa, como que para recuperar a memória do passado, de modo a torná-la viva no
seu presente. É esta a miséria e a grandeza da sua ação. Precisa, então, de
atribuir valor a esta ação para que tudo mude em si. Se a desvalorizar, o
contrário também sucederá. É a projeção que cria o significado. E parece
entender, agora, a Criança que projetou uma fantasia na ação deste dia – a
viagem não foi mais do que desenvolver um processo insensato, que pôs em marcha
impetuosamente com uma urgência sem sentido. Não quer, por isso mesmo, abalar,
partir, num impulso súbito. Tem tempo para pensar. E é isso que fará. Trouxe
consigo o computador pessoal. Irá escrever. Irá meditar. O tempo dura o
suficiente para compor uma reflexão. E, então, neste momento, a Criança viu que
o rasto de tristeza tinha desaparecido como uma onda, numa praia, desfeita em
espuma.