segunda-feira, 16 de setembro de 2024

2.

«Pelo primeiro outorgante foi dito que, pela presente escritura, doa, livre de quaisquer ónus ou encargos, e por conta da quota disponível, ao segundo outorgante, a Casa. Disse o segundo outorgante que aceita a presente doação nos termos exarados».

 

Outra fora a escritura, há cem anos atrás, quando o Bisavô celebrara o aforamento do terreno, que fazia parte da grande herdade, fronteira ao lugar onde nasceria a aldeia. O número de gerações em que o foro costumava ser estabelecido era três, porém não sucedera assim, e o Bisavô celebrara uma escritura de aforamento perpétuo transmissível à sua descendência legítima. Fora ele o construtor da Casa e como todos os grandes construtores terá tido o sonho de uma certa eternidade que sempre está associada a uma obra, ainda que, no horizonte dos tempos, sempre efémera, como tudo o que é feito com mão humana. Ou talvez não seja bem assim, talvez; lá longe, num Egito de que ele nunca ouvira falar, outros iguais construtores ergueram edificações e preservaram infinitamente corpos: tão infinitamente quanto chega ao ponto das histórias da origem já terem sido esquecidas. E um pouco por todo o planeta, em continentes e ilhas, marcas imemoriais da construção humana são preservadas em densas florestas.

 

«Ah! Mas são construções em pedra maciça»!, diz-lhe o Filho.

 

Serão, sem dúvida, o que muitos entendem ser grandes livros de pedra como picos de altas montanhas tão desiguais da Casa, em alvenaria e taipa, e condenada ao envelhecimento, tanto quanto um homem à sua decrepitude. E para mais sem segredos. Toda a história da Casa está registada em consecutivas escrituras que assinalam mortes e sucessões ao longo do século vinte. E assim, do mesmo modo, a história da família está registada na Casa, quem sucedeu a quem, quem casou com quem, a variação dos nomes e apelidos, e até a ocultação para sempre do dia da morte do Bisavô, que ninguém guardara na memória.

 

Era o outono de dois mil e doze, quando a Criança decide partir de Lisboa para o coração do Alentejo. Não fora uma decisão longamente ponderada. A vontade nascera de um impulso súbito, sentido como necessário. Os mapas e as fotografias áreas eram insuficientes para que a recordação se desenhasse com a exatidão necessária para sentir que a Casa lhe pertencia; que era seu aquele chão que há décadas acolhia as sucessivas gerações, uma após outra, ininterruptamente, até à morte. Por isso, na noite anterior, no dia mesmo em que se celebrara a escritura de doação, sentira uma necessidade aguda de partir, como se, nesse gesto, se simbolizasse a posse.

 

Bastaria fazer uma simples mala de viagem com o mínimo indispensável para a permanência de vinte e um dias. Algumas roupas, objetos de higiene pessoal, um computador portátil, carregadores de baterias, e, sim, como leitura, levaria consigo o Caderno manuscrito da Avó do qual a Criança fora a fiel depositária. O que a levava para longe do seu local habitual de vida fácil e conforto era, sobretudo, um impulso. Mas, ponderando melhor, dir-se-ia que todo o seu percurso de vida a preparara para este momento: o instante de abandonar tudo para procurar conhecer o mistério que é nascer para, fatalmente, morrer um dia. E parecia-lhe, agudamente, que era a Casa e a história da família, que não era senão uma sucessão de nascimentos e de mortes, que lhe dariam as respostas inevitáveis. Como compreender o grande mecanismo da existência? Como desvendar os grandes mistérios? Havia aqueles que perscrutavam os céus, com potentes telescópios ou que, em laboratórios ou em quadros gigantescos, faziam experiências e equações extraordinárias, que poucos entendem, para compreenderem a formulação do mundo. Outros rendiam-se a uma fé contida em sagrados livros e aos conhecimentos que, primeiramente transmitidos de boca a ouvido, eram agora, no dealbar do século vinte e um, publicitados em livros, palestras e conferências. Mas ela, a Criança, escolhia uma via diferente. Escolhia uma via pessoal e intransmissível, escolhia procurar na Casa a compreensão para o grande mistério da existência, o sentido da vida.

 

Esta ideia não lhe ocorrera no instante imediato em que decidira partir. Foi, antes, sendo construída ao longo do trajeto pela autoestrada, que percorria, conduzindo devagar como se tivesse consciência que uma etapa fundamental era justamente esta, a da viagem. O primeiro troço, a Ponte Vasco da Gama. Só aqui teve perceção que abandonava a capital, deixando para trás tudo o que constituía a sua vida presente. E, também aqui, se interrogou se algum dia voltaria. Regressaria, findos os vinte e um dias de férias ou, em alternativa, largava tudo e começava uma nova vida a partir de um novo ponto e de uma nova realidade? O rio Tejo que ia ficando para trás era a fronteira para um Sul que abandonara há trinta e seis anos, os anos da sua vida adulta, e que agora pareciam nada terem acrescentado a si própria; era como se todo o entendimento necessário para a compreensão da existência lhe tivesse sido revelado na infância, e, agora, a ela voltasse, procurando recuperar o todo em profundidade que lhe havia escapado.

Mas foi, definitivamente, a passagem na portagem que marcou o início do seu trajeto para Sul como caminheiro que empreende um trajeto de peregrinação. Lembrou-se da catedral de São Tiago, ponto de chegada de tantos milhares de peregrinos e pensou na Casa, a sua catedral. O seu lugar sagrado. Porque todo o lugar que se ama é sagrado e a Criança tinha amado aquele espaço, que lhe dera abrigo durante tantos anos quantos os da infância. E é essa proteção que todo o peregrino procura, quando inicia um trajeto, é o ponto de chegada que o move e lhe dá alento para avançar, apesar das dificuldades com as quais se possa deparar. Ainda que o ponto de chegada possa ser uma miragem de um sonho que se constrói ao longo de uma vida. Talvez fosse isso mesmo que se passasse com a Criança. Talvez que, ao cruzar a portagem, antevisse a Casa na sua singularidade perdida de lar perfeito, porque habitado pelas Avós, hoje mortas. Talvez que, afinal, fosse um equívoco aquilo que a movia em direção a Sul.

 

Depois da primeira placa de desvio para Évora, parou numa estação de serviço. Precisava de andar um pouco, tomar um café e sentar-se a refletir. Na verdade, desde à noite, no dia anterior, ao serão, que ainda não pensara exatamente sobre o que ia fazer. Fora tudo muito rápido. Mandara a mensagem ao seu chefe e fizera a mala. Mal conseguira dormir. Apenas umas quatro ou cinco horas para repousar e, logo de madrugada, mal nascera o dia, descera para a garagem a preparar o carro e fora abastecer-se de gasolina. Pusera-se à estrada. O caminho estava fixado na sua memória como algo que não pode jamais ser apagado, embora já não fizesse o trajeto há décadas. Desde a morte da Avó que não tornara a visitar a Casa, que permanecera desde então fechada. Por isso, pareceu-lhe acolhedor aquele local de paragem no vazio cinzento de uma autoestrada onde quase se não cruzara com outros automobilistas. «Tanta estrada e tão pouca gente», pensara a Criança, mas agora, na estação de serviço, estão estacionados seis ou sete automóveis e há algum movimento de pessoas na zona da cafetaria e da esplanada. Pediu um café, sem açúcar, e sentou-se também no exterior, numa mesa contígua a uma família em viagem. São espanhóis, nota-se, sobretudo, por uma outra vivacidade na entoação da língua, que no português é mais densa e melancólica, e por um gesticular vivo no acompanhamento da linguagem. «É este um povo aguerrido», pensa. E, então, surge-lhe uma recordação muito clara da boa disposição das Avós e dos ditos divertidos, apesar de uma vida tão pobre e tão sacrificada.

 

Passados não mais do que cinco minutos, a família estrangeira partiu, num arraial de alegria, ficando a Criança sozinha na esplanada. Pôde então observar melhor o espaço, resguardado da beira da autoestrada, e, nos largos vasos de barro e nas plantas, pôde descobrir já uma feição característica da província alentejana. Estava um dia de céu claro e havia um vento outonal que ainda não era demasiado frio. Pensou então, «Vinte e um dias para tomar uma decisão. Vinte e um dias para decidir o que fazer com a Casa; o que fazer com a minha vida? Vinte e um dias para recuperar todo um passado inteiro. Vender a Casa? Recuperar a Casa? Reconstruí-la? Deixá-la abandonada?». Era como se, nestes vagos pensamentos repetitivos, a Criança procurasse estabelecer um elo entre a súbita decisão da partida e o ponto de chegada. Mas, no fundo, quando decidira partir não estava em causa o fazer mas sim o ser. Era a procura consciente de si mesma no espaço da Casa a razão da sua decisão. Na verdade, este regresso era sobretudo um regresso no tempo e não no espaço. Justamente o que não sabia se era possível de realizar. Mas trouxera consigo o Caderno manuscrito da Avó, e seria através dele que se iria guiar. E lembrou-se de um primeiro registo, dissera uma vez uma cigana à Avó que ela atravessaria duas vezes o Tejo.

 


 

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

1.

Às vezes, pensara que a Casa tinha raízes fundas que mergulhavam na terra. E, por isso, imaginara, num mapa do subsolo, os caminhos escondidos, que atravessavam a aldeia, cruzando veios de água, sílica, areias, vários minerais, e matéria orgânica capaz de manter a estrutura da Casa na superfície. Sem uma fratura, as paredes da Casa ostentavam a força de um tronco de árvore centenário, abandonado às inclemências dos rigores das estações, que vivificava dando abrigo. Era, assim, para a Criança, a Casa um todo orgânico que se confundia com a paisagem em redor de outras casas idênticas, de largas paredes de taipa, preenchidas por xisto, areia, barro, palha amassados e caiada de um branco brilhante, refratário, que iluminava até na escuridão dos dias mais cinzentos do ano.

 

Hoje, passados tantos anos, os mapas que a Criança observa são os da superfície dos terrenos, e a Casa, vista na fotografia aérea, tirada nos anos sessenta, é, no cinzento da cor, uma mancha exatamente retangular desprovida da ligação ao subsolo. O movimento que dá vida não está inscrito na fotografia; onde a Casa povoada e habitada pelas gerações da família até si?, que labutaram na construção como quem semeou, nos campos, o trigo e o ceifou na reminiscência do pão diário que é o suor da vida. E inorgânica, a imagem, que tem nas suas mãos, não lhe permite revisitar o passado real da Casa, obscurecido pela distância a que se encontra no espaço físico e pelos anos distantes de uma memória que tecia engenhosas fantasias, alimentadas pelas histórias de ouvir contar que as Avós tão bem conheciam.

 

 A street view do Google Maps não chegou ainda à aldeia alentejana para que a Criança lhe possa explorar os recantos mais atuais e, sobretudo, olhar para a Casa que acaba de herdar, tentando reconhecer nela a presença de si mesma enquanto a habitante para sempre mais jovem. A fixação da imagem da Casa num tempo recente torna-se impossível. O recurso à tecnologia mais atual apenas permite definir o trajeto retilíneo até à aldeia e observar, no ecrã do computador, o mesmo retângulo informe do telhado, recolhido mais recentemente por imagens de satélite. E, num determinado sentido, pensa, «como tudo é tão estranho: a distância da profundidade das raízes encontra-se ao nível das imagens feitas do Céu, tentando ambas fixar a Casa, um na medida do universo onírico que recria com inexatidão a vida, outro na medida do despontar da técnica que regista com exatidão a realidade». Entre um e outro, a mente da Criança oscila como na oscilação de uma cadeira de baloiço, procurando perscrutar a sua mente e, ao mesmo tempo, tentando encontrar, nos elementos físicos de registo, os pedaços exatos que vêm complementar uma memória fragmentada construída pelas conversas ouvidas, nos serões, junto à lareira e que agora serve para recartografar a história, no presente, como se desenhasse um mapa não do espaço mas do tempo.  

 

A Criança recorre, por isso, à memória, para desenhar a aldeia no campo visual da sua mente. Se vista do Céu, sem zoom, esta é apenas um pequeno ponto indefinido num largo desconcerto de planície despovoada; mas, na recordação que guarda, ela parece erguer-se toda, como um vértice geodésico, para além do extenso terreno que a cerca, na correnteza de um fio de estrada muito longo e estreito. É, sem dúvida, uma finisterra, sem cabo de mar, abandonada no coração das cercanias alentejanas, mergulhada na profunda solidão dos campos. Parece-lhe, agora, assim, uma espécie de infinito que não se pode tocar, e aquela distância, percorrida na estrada principal até chegar à aldeia, é como se fosse um caminho de existência, em que como peregrinos avançamos, desconhecendo o traçado. Contudo, embora previsível, a estrada retilínea, dá suporte à Criança para a divagação e o sonho. Sonhar durante o trajeto e o caminho, todo ele agora contido no pensamento. Sonhar as raízes secas ao sol na terra esventrada, lado a lado com as reses dolentes, que dormitam à sombra dos raros sobreiros e azinheiras dispersos no montado. Fazer a estrada é chegar à aldeia como viajante intrépido e ver, na primeira curva do caminho, a Casa que não se distingue do conjunto do casario todo ele de um branco lavado, inocente e puro.

 

E entre a memória dos campos, da aldeia e da Casa e a realidade que hoje será, sobrepõe-se o agudo avanço de uma civilização citadina e litoral, a mesma onde há tantos anos a Criança vive, mergulhada no ritmo do advento de tudo o que é eletrónico e imediato; mergulhada no bulício daquilo que se move instantaneamente, o telecomando da porta da garagem do prédio, o telecomando dos estores da casa, o telecomando do televisor e do aparelho de rádio, o milagre da técnica do computador e do gps e, acima de tudo, o bulício do emprego, onde se sente como mais um elo desta cadeia de automatismos de manhã até ao entardecer. A curiosidade que sente pela Casa e pela aldeia, desde que o Pai lhe fizera a doação de herança da habitação, é imensa, procurando saber até que ponto é viva e real a sua memória, na distância de trinta e seis anos, qual porto seguro e imutável que permanece na lembrança.

 

O sentimento desse porto seguro, que está lá, algures, meio perdido numa planície longínqua, é como um reino misterioso que se procura, sem achar, é como uma Nova Atlântida descoberta num mar, é como uma utopia verdadeira que a Criança guarda em si mesma como um sonho real e vivido. De alguma forma no povoamento dos seus sonhos, habita-os a recordação de um apogeu civilizacional, organizado e justo, feito à medida de quem vive ao ritmo das estações e do movimento dos dias, e o isolamento não é senão a marca que preserva a identidade de uma sociedade fraterna. A aldeia foi no passado o seu centro do mundo, livre de injustiças sociais e onde cada um labutava na medida das suas capacidades e aptidões, não desejando senão o sustento diário para uma vida condigna. Talvez outros vissem nisto uma forma de pobreza, mas a Criança recorda apenas que tinha alegria e pão e sabedoria em todos os momentos do dia. Tudo o que fora essencial para o seu crescimento. Habitara no berço de uma harmonia absoluta, qual profecia milenarista de uma utopia social. Por isso, perscruta a Criança os mapas para tentar obter um sinal desta utopia que traz na memória. A paz que se eterniza numa tarde que passa lenta, num dia que corre sem sobressaltos, numa existência feliz. O cúmulo da felicidade possível, estava todo ali concentrado naquele ponto minúsculo, se visto do Céu, mas que se estendia no espaço da sua memória em ruas estreitas, em casas e em gentes como um oásis refrescante no meio de uma paisagem deserta. O reino em que vivera e habitara durante catorze anos, poderia ser recuperado? Estaria ele ali ainda intacto, ou a civilização ocidental teria destruído esta que fora a sua última realização?

     

Quer acreditar que não. Por isso, a Criança, sem hesitar, pega no telemóvel e envia uma simples mensagem ao seu chefe de gabinete: «Por motivos pessoais, antecipo o período de vinte e um dias de férias, a gozar a partir de amanhã».




Parte I: Um ténue fio de luz